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O sequestro da cultura

É preciso políticas para o setor, para que o artista tenha parte de seu sustento, como em qualquer lugar onde a arte é respeitada e faz parte do cotidiano da cidade

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares

Publicado em 7 de outubro de 2024 às 05:00

“É batata!”, diria um personagem de Nelson Rodrigues.

Qualquer pessoa candidata que queira se apresentar como esclarecida, progressista e conectada às demandas contemporâneas tem a pauta da “cultura” como um de seus eixos de campanha.

Dentro da perspectiva histórica que associa cultura a arte, essa pessoa vai atrair e reunir artistas, palavras de apoio, e terá o belo discurso da importância da arte para a formação e compreensão crítica e sensível da população.

Na recente campanha para vereança de Salvador, não foi diferente. Recebi diversas indicações de candidatas, principalmente, em que a cultura era eixo e centralidade. Um copia e cola cínico e oportunista.

Agora, sente e converse com essa pessoa sobre políticas para as artes. Dê um panorama da desgraça profissional em que Salvador se afundou. Ela não fará ideia nem dos indicadores e nem de possíveis soluções.

Sequestraram a pauta da cultura, notadamente das artes, e com uma estratégia que me faz lembrar, de imediato, o livro O Teatro é Necessário, de Denis Guénoun. Em determinada parte do livro, o autor nos mostra que há cada vez mais pessoas querendo fazer teatro, e menos pessoas querendo ver teatro, na França.

Não que sejamos passíveis de comparação com eles, mas o prazer em fazer arte está muito distante de se realmente, de maneira profissional, séria e sustentável, fazer arte.

Essa galera politiqueira, que atrai nossos votos e depois nos repele de suas ações, por baixo da aparência de uma real preocupação com as artes, quer ficar entre uma política assistencialista e sua política partidária. Joga para a torcida, mostrando os méritos de se pensar nos excluídos.

E tudo se torna uma novela surrealista. Os artistas profissionais de Salvador estão excluídos, estão sem recursos, fazendo bicos para sobreviver, ou mudando de profissão, e a politicagem vem falar em inclusão das minorias na arte. E aí tome-lhe centro de formação aqui, espaço cultural ali, democratização de recursos acolá, e o que antes não existia, passa a inexistir de maneira ampliada.

Não há mercado, não há políticas para o setor, estamos à míngua, mas… A galera da política quer incluir nessa exclusão outros tipos de excluídos. A perspectiva é linda: no lugar dos atuais artistas profissionais à míngua, teremos grupos tradicionalmente excluídos tendo a oportunidade de dividir o que não existe, numa ampliação da miséria cultural da cidade.

Arte precisa ser levada a sério. E a Bahia até tentou. Quando criou seus cursos de nível superior, a UFBA revolucionou não só Salvador, como o Brasil. Desta incubadora criativa, brotaram boa parte das ideias e protagonistas da modernização das artes brasileiras. Mas temos, hoje em dia, escolas de arte que pretendem formar artistas em nível superior de maneira inútil.

É necessária uma cadeia produtiva, que vá da formação à profissionalização. De que adianta profissionalizar se a tendência é uma opressão amadora pairando sobre a gente? E ainda mais quando se relativiza a profissionalização, a técnica, o aprofundamento e o estudo (inclusive, dentro das próprias universidades)?

Quando faltam políticas para as artes, quando o topo da cadeia está moribundo, de que adianta a pessoa candidata arrotar seu apoio à cultura?

Mais cultura para a periferia? Mais acessibilidade à cultura? Mais acesso à formação, a equipamentos culturais? Para se fazer e se ver o quê?

Entramos aqui numa sinuca de bico. Cada vez mais tentam descredibilizar a questão técnica da arte. Tudo é arte. Qualquer um pode ser artista. É careta, opressor, colonizador, pensar o lugar da arte como um lugar de técnica.

Em vez de se ampliar o acesso às técnicas, para que todos possam ter, em pé de igualdade, uma formação digna como profissionais, é comum o discurso de que tudo é relativo, de que são tipos diferentes de arte, de que é preciso novos olhares sobre outros fazeres.

Dentro deste belo discurso inclusivo, democrático e de acolhimento, esconde-se uma gigante opressão amadora que nos achata com pesadas nuvens de ilusão. Há um projeto de mediocrização onde, em vez de democratização da qualificação profissional, se faz uma tábula rasa impedindo que novos talentos sejam potencializados e lapidados.

Podemos até aceitar, dentro da nossa perspectiva de esquerda cirandeira e culpa psicossocial, que uma pessoa que não consegue articular o texto e se posicionar em cena, que não entende o que fala e que fala sem que ninguém entenda, seja tão atriz quanto Yumara Rodrigues. É bonito. É acolhedor. É mostrar que as lentes da contemporaneidade são outras, mais diversas e relativas. Fico até emocionado escrevendo isso.

Mas o público comum, que quer ver uma boa peça de teatro, talvez não pense assim.

E na gangorra da sustentabilidade das artes, o público faz dupla com as instâncias públicas. É preciso políticas para o setor, para que o artista tenha parte de seu sustento, como em qualquer lugar onde a arte é respeitada e faz parte do cotidiano da cidade; e do orçamento do erário. E é preciso que haja público para sustentar a outra parte disso.

Uma plateia vai ao teatro em busca de um bom texto, bons atores, boa direção, por mais que não saiba identificar tecnicamente tudo isso. E paga por isso. Feliz.

A amadorização generalizada não trará público pagante.

A amadorização generalizada está inviabilizando que os poucos artistas que ainda insistem em sua arte sigam fazendo sua arte.

Quando vi o anúncio de que o Teatro Castro Alves seria o mais moderno da América Latina, a despeito do que isso possa de fato significar, imediatamente pensei: pra quê? Para receber grandes espetáculos de fora? Seremos aquela província esgotando ingressos das produções vindas do Sul maravilha, recebendo elogio dos artistas que estão de passagem?

Não há, na gestão da cultura, nenhuma perspectiva que aponte para que tenhamos grandes produções locais ocupando nossos espaços culturais. Estamos a um passo de virar um grande AirBNB cultural.

Estamos também a um passo de ficarmos espremidos por mega eventos patrocinados pelas secretarias de cultura e turismo, com artistas renomados, em sua maioria gratuitos – oprimindo as produções locais que tentam sobreviver de maneira independente com a bilheteria. E isso trará a seguida impressão da força do investimento público na democratização e acesso a bens culturais, por um lado.

E, por outro lado, como já escrevi anteriormente, ficaremos com essa imensa confusão entre cultura e arte, forçando uma inclusão e uma diversificação que em nada vai possibilitar que mais agentes tenham dignidade em sua profissão como artistas, vivendo do que tecem. Será um eterno gasto de recursos para um poço sem fundo, pois investimento algum trará desenvolvimento e sustentabilidades reais. Seguirão apenas pulverizando mais nossa desgraça, tirando o quase nada dos que tentam sobreviver para que a miséria seja ampla, geral e irrestrita. E olhe que esta uma é uma visão otimista, porque pelo investimento que tem-se feito nas artes, a tendência é ter nada, mesmo. Um nada absoluto com espasmos de existência.

Eu tenho todo tipo de aluno na Escola de Teatro da UFBA. Diversas cores, gêneros, classes sociais. E incentivamos a que todas e todos sigam seu percurso acadêmico para uma formação sólida e que possa capacitar a pessoa a se inserir no mercado. Tudo isso de maneira democrática, e prezando pela diversidade e responsabilidade de uma instituição pública. Mas… qual mercado? Ele não existe mais. A melhor inclusão que poderia haver seria fortalecer o topo da cadeia, o teatro profissional. Uma produção puxa a outra. Elencos aumentam. Grupos novos surgem. Teatros demandam mais produções, novos espaços precisam ser abertos. E com isso, mais gente formada vai se inserindo na profissão. E mais gente vai querendo ser profissional. E assim o mercado se expande. Quando o mercado se expande, temos mais pessoas de mais classes, cores, gêneros e locais interessadas em se profissionalizar. As plateias, também. Quanto mais e melhor se desenvolvem e se ampliam as produções, temporadas e locais, mais gente de mais lugares vai querer ver teatro, por exemplo. E a cadeia produtiva aumenta, o público consumidor se multiplica, e mais gente vai poder viver de arte na cidade.

Mas a preocupação com o profissional das artes é nula. Somente esparsos editais (ferramenta muitas vezes errada, mas tábua de salvação única da incompetência dos gestores) como uma espécie de galinha gorda, para que alguns poucos se iludam numa produção natimorta por alguns meses, muitas vezes para poucas apresentações e sepultamento artístico posterior.

Aos olhos precipitados, teremos cada vez mais uma cidade pulsando cultura. Gestores comemoram suas ações como melhorias efetivas do setor. Vários equipamentos culturais a pleno vapor, trazendo à população grandes produções, por um lado, e, por outro, pessoas felizes por poderem fazer e mostrar sua arte, em todos os cantos da cidade, para derrubar de vez esses muros elitistas e de falta de oportunidade.

Na prática, a arte profissional, que já estava praticamente morta, seguirá respirando por aparelhos. E as candidaturas seguirão com a pauta da cultura como eixo fundamental, buscando os votos dos artistas que seguirão resistindo ou desistindo do seu ofício, num eterno jogo cínico digno das melhores peças teatrais (que dificilmente são ou serão encenadas aqui).

Será que em nossa terra desolada há alguém da política que realmente se importa com nós, artistas? Já joguei muito meu voto fora achando que, minimamente, sim. E o que vi foi um carreirismo com máscara assistencialista e inclusiva, sem dar assistência e excluindo o artista de suas ações políticas.

E várias vezes, quando o bicho pegou, a primeira coisa que essa gentalha faz é jogar a culpa em nossas costas. Aí, vem aquele discurso de que a classe precisa se organizar, que é preciso articulação para se cobrar de maneira política. Uma classe desestruturada, desmembrada, destruída, sendo culpada por seu esfacelamento.

Parem de nos usar e nos enganar. E ainda nos culpar.

E façam seu trabalho. Está lá, na Constituição Federal.

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