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Jornal Correio | A montanha da ilusão e o golpe de sorte em Paris

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A montanha da ilusão e
o golpe de sorte em Paris

Não há lugar para a reflexão, tampouco para a trans-
formação profunda, seja através de um filme, seja de um livro significativo

Publicado em 12 de outubro de 2024 às 05:00

Em tempos de streaming, as salas de cinema vivem entregues às moscas. Quinze pessoas, é multidão! Geralmente, vou ao cinema duas vezes por semana, mesmo que não haja uma oferta tão generosa em termos de qualidade, pois entendo – desde que assisti ao meu primeiro filme no cinema, aos quatro anos, do qual jamais me esqueci: Esses Homens Maravilhosos e Suas Máquinas Voadoras (1965) – que ir ao cinema é uma experiência única, um afastamento da realidade, uma concessão que fazemos a nós mesmos, abdicando da vida, dos fatos cotidianos, das pessoas e, hoje, de redes sociais e telefones móveis. Em casa, diante da tevê, isso não ocorre. O filme está ali, mas igualmente tudo o mais. Não há imersão, não há afastamento, não há fuga. A qualquer momento, as premências da vida estão a nos fustigar: telefones, interfones, campainhas, mensagens as mais diversas, alguém que de algum cômodo nos chama etc. Basta um instante, e o filme se foi!

Sendo assim, eu não poderia perder a chance de ver o mais recente filme de Woody Allen: Golpe de Sorte em Paris. E mesmo que não tenha lido, de imediato, críticas favoráveis. Ora, no dia em que a crítica – e ainda mais a de hoje, completamente amadora, mendigando “likes” no Youtube – me afastar de ver um filme, pode crer que estou morto. Bem, a mídia (na qual também não acredito) tem falado que este é o quinquagésimo filme de Allen e talvez o seu último, pois, já idoso e com dificuldades de obter recursos de produção, devido à perseguição que sofre nos EUA, o diretor parece querer desistir. Mesmo assim, ele correu para a Europa, conseguiu recursos e filmou na França, pela primeira vez em outro idioma, o francês. Alguém, nesse momento, poderia me perguntar: “E afinal de contas, depois dessa arenga toda, gostou do filme?” Não condeno esse leitor fictício por sua pressa, besta sou eu, que sou lento, devagar, com tendência a olhar tudo de forma detida e abrangente. Eu lhe diria: “Fui ver o filme duas vezes, como ocasionalmente faço quando um filme me seduz. Isso basta?” E veria uma terceira, tranquilamente, porque neste filme há coisas que pouco se vê no cinema de cartilha que é produzido hoje em dia: ironia, sarcasmo, verdades ditas sem necessidade de efeitos especiais, cenários reais, gente de carne e osso expondo sua personalidade e seus defeitos, arroubos de petulância que ao fim caem por terra.

Como todo filme de Allen, os créditos surgem embalados por um tema de jazz. Ao fim desse trecho que só nos obriga a ler e ouvir (e como isso deve irritar certas pessoas!), a cena se abre numa rua de Paris. Os dois primeiros personagens se mostram. Daí por diante, o que temos é um choque depois de outro. Isso, de forma geral, se dá com a aproximação de dois mundos, um perfeito, limpo e endinheirado contra outro falso, podre e violento. O primeiro está nas coisas, nos lugares, nos bens de consumo, nas roupas, tudo impecavelmente asséptico, harmonioso, colorido, ensolarado e brilhante: das roupas da personagem principal aos lugares pelos quais ela transita, mas igualmente nas comidas, nas bebidas, nas festas, nos interiores das casas e da galeria de arte onde ela trabalha. O segundo está no que as pessoas dizem e como agem. Frequentemente, desde o início do filme, mentira e falsidade surgem numa fala ou num ato, ambos potencializados pelo sarcasmo, pela necessidade de ferir o outro. Mesmo a “mocinha” não foge a esta regra, embora com menos frequência e pressionada pela transformação inevitável que ela há de sofrer, ou não seria um filme de arte nem de Woody Allen. O único personagem verdadeiro e sincero é o escritor, de uma sinceridade psicológica que nos incomoda no início e que, neste nosso tempo de mentiras e devassidão conveniente, chega a parecer ingênua. Será por acaso que Allen escolheu esse tipo e lhe deu tais características? O escritor atualmente é, talvez, de todas as “poses artísticas” de nossa época a mais permissiva, adaptável e moldável. Os escritores se tornaram verdadeiros camaleões, vão na corrente da moda e se submetem a tudo: ao que seu editor impõe, conforme ditam as cartilhas atuais de recepção, e ao desejo do mercado, o que as pessoas querem ler. A liberdade de tema e forma ficaram no passado. Vale o quanto vão vender e o quanto vão ganhar. Vale o quanto vão aparecer e o quanto serão mencionados. Mas o escritor de Allen está acima dessa condenação: escreve o que quer e como quer, na cidade que ama (Paris, uma alegoria de Nova York) e ciente de que é a sorte que dita as regras. Sem dúvida.

Woody Allen aproxima dois mundos e os obriga a se tocar. Do toque surgem os choques, que se sucedem até o desfecho, como sempre irônico e impactante, mas em tom nada pomposo, como um tema de cool jazz, que nos embala, mas não nos tira da cadeira. Ouvimos, apreciamos, ficamos com ele na cabeça, mas a vida está lá fora e logo nos arrebata. Assim é com este filme. Woody Allen parece saber que chegamos a um limite em que nada de alta qualidade será capaz de nos arrancar do mundo que a cultura de massa e o mercado com seus apelos e exigências criaram. Parece nos dizer que não há lugar para ele, nem para filmes mais sofisticados. Não há lugar para a reflexão, tampouco para a transformação profunda, seja através de um filme, seja de um livro verdadeiramente significativo (alguém leu algum recentemente?). Ele nos mostra a realidade cruel que está conosco, vivendo ao nosso lado ou à nossa volta – especialmente com o crime a resolver qualquer impasse, desterrando o diálogo e a diplomacia para uma espécie de limbo -, mas o faz de um modo a nos deixar incapazes de reagir e propensos a afirmar: “Isso é só mais um filme”. Não é. É uma verdade dolorosa de como o mundo vai mal. Nesse aspecto, Golpe de Sorte em Paris é duplamente irônico: com a vida neste mundo e com ele próprio, o filme. Li em algum lugar que Woody Allen não se ressentiu do sofrimento que passou recentemente com as reações dos americanos a ele. Não? Vejam melhor o filme! Mas não esperem o “conhecimento mastigadinho” das produções de consumo. Em Allen, como em qualquer obra de arte, é necessária a “cocriação”, para entendê-lo em sua essência. É preciso esforço (não é uma fita de super-heróis), percepção (não é um gênero fechado) e deciframento (metáforas existem).

Se este é o canto de cisne de Woody Allen, não sei. Mas, se for, foi em grande estilo. Mantém as pedras dispostas na montanha da ilusão, mas desloca uma ou outra, o que basta para uma avalanche, que, infelizmente não virá.

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