Uma pesquisa conduzida pelo Hospital Universitário de Brasília (UnB) mostrou resultados positivos no tratamento de crianças e adolescentes com autismo moderado a grave com um fitoterápico à base de canabidiol (CBD) e tetraidrocanabinol (THC). O estudo, publicado na revista Pharmaceuticals e prestes a ser apresentado no 19º Congresso Brasileiro de Neurologia Infantil, acompanhou 30 pacientes de 5 a 18 anos ao longo de sete meses. Destes, seis meses foram dedicados ao tratamento e monitoramento contínuo com a formulação ajustada para cada paciente, com doses médias de 2 a 3 miligramas por quilo.
Os dados coletados indicaram que 70% dos pacientes apresentaram redução em comportamentos como agressividade e irritabilidade. Essa mudança permitiu melhor foco durante as atividades escolares e terapias, resultando em um aprendizado mais eficaz.
A pesquisa também destacou que 67% dos pacientes tiveram avanços na comunicação e na interação social, aspectos críticos para a melhoria da qualidade de vida. Essa evolução foi percebida em várias situações, desde a fala até a capacidade de se fazer entender e interagir de forma mais afetiva com familiares.
“Lembro de um paciente que eu acompanhava há seis anos e que nunca havia feito contato visual. De repente, ele começou a me olhar nos olhos. Isso foi impressionante”, comemora Jeanne Mazza, neurologista infantojuvenil do Hospital Universitário de Brasília (UnB) e líder do estudo.
Além disso, 63% dos participantes relataram progresso em disfunções sensoriais, incluindo a aceitação de alimentos e o toque físico, que antes eram fontes de desconforto.
“O relato de crianças que começaram a manifestar afetividade, se permitir tocar e expressar preocupação é muito marcante. Essa aproximação afetiva consolida os laços familiares e facilita a comunicação, algo muito difícil de ocorrer em casos mais complexos de neurodivergência”, afirma Alexandre Valverde, psiquiatra pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que não teve envolvimento com a pesquisa.
Impacto nos comportamentos repetitivos e conexão com TDAH
A redução de comportamentos repetitivos, como o agitar das mãos e o balançar do corpo, foi outro ponto de destaque. Estes comportamentos, medidos por uma escala desenvolvida a partir do feedback das famílias, são importantes, pois o diagnóstico do autismo se baseia tanto nas dificuldades de comunicação e interação quanto nos comportamentos padronizados.
Como cerca de 60% dos pacientes com autismo também apresentam Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), o estudo trouxe dados relevantes: 50% dos pacientes com TDAH demonstraram melhorias na hiperatividade e agitação. Esse efeito positivo permitiu um aprendizado mais efetivo, destacando o potencial do canabidiol como coadjuvante no tratamento do TDAH, mesmo não sendo um psicoestimulante.
Redução da polifarmácia
Outro aspecto importante do estudo foi a redução do uso de medicamentos convencionais. Cerca de 74% dos participantes conseguiram diminuir ou suspender pelo menos um medicamento, o que representa um avanço significativo. “Essa redução da carga de medicação alopática é muito positiva pois permite uma diminuição da sobrecarga sobre o fígado e os rins”, observa Valverde.
Segundo o estudo, a principal vantagem do canabidiol é a baixa incidência de efeitos colaterais. “Enquanto medicamentos tradicionais, como a risperidona, podem causar ganho de peso, disfunções metabólicas e elevação de prolactina, o canabidiol não apresentou esses problemas. Apenas alguns pacientes relataram desconforto com o sabor, mas conseguimos contornar isso com suco”, afirma Jeanne.
Ao mesmo tempo, Valverde completa: “O aumento do apetite foi um efeito notado pelos pais, esperado devido ao uso do canabidiol com uma pequena quantidade de THC, embora o canabidiol puro tenda a diminuir o apetite”
Perspectivas para o tratamento
Os resultados promissores do estudo abriram caminho para uma segunda fase de pesquisa com um número maior de pacientes e a inclusão de grupos de controle, com o objetivo de confirmar e expandir as descobertas.
Mas essas não são as únicas aspirações dos pesquisadores. “Esperamos que as evidências coletadas pelo estudo contribuam para a liberação do uso do canabidiol no tratamento do TEA, já que atualmente só é permitido para epilepsias graves em crianças e adolescentes. Isso limita muito as opções terapêuticas para pacientes com autismo. O acesso à medicação depende de ordens judiciais, o que é desgastante e sobrecarrega o sistema público”, manifesta Jeanne.
Nesse sentido, Valverde faz um apelo: “É fundamental que a classe política entenda que o canabidiol e outros derivados canábicos podem ter um impacto muito positivo em diversas condições, não só neurológicas, mas também psiquiátricas, como depressão, ansiedade e transtornos de pânico”.
Outro obstáculo é o custo do medicamento. A extração de canabidiol, que é uma das mais de 100 substâncias da cannabis, é cara e medicações com alta concentração de CBD têm um preço elevado. Isso impede o acesso dos pacientes e faz com que muitos retornem aos tratamentos convencionais, que não oferecem os mesmos resultados. “Foi triste ver pacientes que melhoraram durante o estudo voltarem a um estado próximo ao inicial quando o fornecimento do medicamento acabou”, diz Jeanne.
Apesar das intempéries, a expectativa é que, em médio prazo, a formulação utilizada possa ser considerada uma opção de tratamento reconhecida para o autismo, contribuindo para a melhora da qualidade de vida de muitas famílias.